domingo, 19 de abril de 2009

Querido qualquer coisa.

* Inspirado na música Who'd Known, da Lily Allen.

Era tarde, ele sabia. Despistar o porteiro fora fácil, disse que estava de hóspede na casa de um amigo, que tinha as chaves e que era tarde demais para interfonar. "Malas? Deixei na portaria de casa e meu amigo pegou-as mais cedo, estou sem carro, seu - olhou o crachá - Antônio." Chegou a porta e combinou consigo que bateria uma vez apenas, e marcaria 4 minutos no relógio. Se até lá não houvesse sinal, voltaria então para casa. Não demorou mais de dois minutos para ouvir seus passinhos assustados percorrerem o assoalho. Abriu a porta com cara assustada, queria saber se tinha acontecido algo, se ele estava ferido, bêbado ou se fora assaltado. Acalmou-a e se convidou a entrar. "Sabe, eu não queria ir para casa, e pensei que poderia vir pra cá, não sei bem por quê. Já estava dormindo? Não quero te incomodar, pode me deixar aqui nesta sala, eu passo a noite encarando seus discos de jazz." "Não seja bobo, esqueceu da minha permanente insônia? Só não repare nos meus trajes, por favor." Finalmente pôde notá-la: cabelos presos num coque mal feito, camiseta poída do Kurt Cobain, uma divertida calça cor-de-rosa claro e meias com desenhos de sapos alados.

"Vou pegar uma taça para você, eu estava tomando um vinho." Enquanto a esperava, tirou os sapatos e se sentou no chão, apoiando as costas no sofá. O apartamento dela tinha uma luz incrível, queria poder atingir uma assim em seu estúdio. Ela voltou, sentou-se a seu lado, pôs a garrafa na mesa e comentou que estava assistindo desenho animado. "Você não vai rir?" "Por que o faria?" "Não é estranho uma garota da minha idade ficar assistindo maratona dos Flintstones em plena madrugada de sábado?" "Bobinha." Por mais de uma hora ficaram em silêncio, quebrado apenas por ocasionais risadas diante das trapalhadas de Barney. Bebericavam seus vinhos sem muita vontade.

Olhou para o lado, e viu que ela cochilava. Sem pensar no que fazia, passou seu braço por detrás dela, puxando-a para si como se de repente o vento que entrava pela janela tornara-se frio. E aquela garota que sempre parecera assim tão forte e rígida, que escondia o rosto com as mãos ao dar uma risada e que ele vira chorar apenas uma vez, parecia-lhe agora tão frágil, com a expressão leve e a boca meio aberta. Contemplou sua... não sabia dizer o que os dois eram. Nunca entendeu o porquê daquele piercing no nariz, uma fina argolinha prateada. Combinava pouco com sua personalidade assim tão quieta e calma, com sua biblioteca, seu gato malhado, seus discos de jazz e o piano na sala de jantar. E ao mesmo tempo tinha tanto a ver com ela, a rebelde sem causa, a menininha de ouro da família em revolta. Sentiu uma súbita e intensa onda de afeto por ela percorrer-lhe todo o corpo, e tateando o chão, buscava suas mãos para que pudesse apertá-las contra as suas.

Ao fazê-lo, fez com que ela se despertasse, e seus pedidos de desculpa pouco tinham de sinceridade. Ela comentou que a julgar pelas estrelas, o domingo certamente seria de sol, eles poderiam fazer algo divertido. Ele sugeriu um passeio de bicicletas no parque, e lhe pareceu agradável e primaveril. Ele disse que eles poderiam ir depois do café da manhã na cafeteria da esquina, mas ele gostaria de passar em casa antes, para buscar sua câmera. Ela imaginou-o no parque, com suas bermudas de veraneio, assobiando como de costume e se metendo com as abelhas para fotografar uns girassóis. Tal pensamento fez com que um sorriso lhe brotasse nos lábios. Encarou o chão meio envergonhada, sem entender o que tudo aquilo era. Seu braço sobre seu ombro, os joelhos se roçando e as mãos que estavam apoiadas no chão usavam seus polegares para afagar a companheira. Não tinha ideia de onde isso estaria indo, mas se aquilo fosse um filme, ela não precisaria ser nenhuma cineasta para entender o que a cena pedia. Beijou-o, o seu querido fotógrafo, o seu querido qualquer coisa, e não se sentia mais sozinha.

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